domingo, 25 de julho de 2010

A GARANTIA JURÍDICA DOS RECLAMANTES QUANDO DA INCLUSÃO DOS SÓCIOS NO POLO PASSIVO DA RECLAMAÇÃO TRABALHISTA NA FASE DE CONHECIMENTO.

As pessoas (físicas e jurídicas) não se confundem, ao passo que, judicialmente, para que se tenha desconsiderada a personalidade jurídica da empresa é necessário que se tenha, no entender da doutrina e jurisprudência majoritária, esgotadas todas as tentativas possíveis de atingimento ao patrimônio da pessoa jurídica para, a posteriori, acometer a execução aos patrimônios dos sócios a fim de satisfazer o crédito judicial.

Embora seja esse o patamar o qual se encontra a dinâmica processual atual, há, ainda, em alguns casos, sócios chamados no pólo passivo da demanda na fase de conhecimento. Nesse aspecto, mesmo havendo posicionamento majoritário, em sentido contrário, acerca do momento certo de integração dos sócios no pólo passivo, defendemos a necessidade de integrar os sócios na fase de conhecimento, por haver interesse do autor, no sentido de que a partir do momento em que estiverem os sócios no processo, qualquer ato de dissolução patrimonial configuraria, de imediato, fraude à execução, nas hipóteses de levá-los à insolvência ou de patente interesse de prejudicar a resolução processual com a satisfação do crédito.

Em relação aos tipos de fraudes, Humberto Theodoro Junior:

a) a fraude contra credores pressupõe sempre um devedor em estado de insolvência e ocorre antes que os credores tenham ingressado em juízo para cobrar seus créditos; é causa de anulação do ato de disposição praticado pelo devedor;

b) a fraude de execução não depende, necessariamente, do estado de insolvência do devedor e só ocorre no curso de ação judicial contra o alienante; é causa de ineficácia da alienação." (THEODORO JUNIOR, 2002: 101)

Na hipótese de não integração dos sócios no pólo passivo, na fase de conhecimento, não há, portanto, que falar em fraude contra credores, pois, no aspecto, não há, ainda, crédito líquido e certo, passível de mora e descumprimento, mas tão-somente a pretensão de algum direito, que poderá ser reconhecido em juízo, ou não.

Por outro lado, reconhecido o direito, e não tendo havido a integração dos sócios no pólo passivo na fase de conhecimento, havendo dificuldade de encontrar patrimônio da empresa, poder-se-á, na fase da execução, desconsiderar a personalidade jurídica da empresa e, a partir de então, acometer o patrimônio dos sócios à responsabilidade do que fora reconhecido em juízo. Desta forma, somente a partir da integração dos sócios no pólo passivo, após a desconsideração da personalidade jurídica na fase de execução, é que se poderá falar em fraude à execução, se houver.

Das duas hipóteses supra, tem-se os seguintes questionamentos.

No que se refere à hipótese da não integração dos sócios, não haverá nem fraude contra credores, tampouco fraude à execução. Àquela por não se ter crédito reconhecido e a essa por não estarem os sócios integrados no pólo passivo da demanda.

Já na segunda hipótese, a fraude à execução configurar-se-á, apenas, após a integração dos sócios no pólo passivo, antes disso poderá o sócio dispor ao seu alvedrio de seu patrimônio, prejudicando, de certa forma, a prestação jurisdicional e trazendo demora ao processo.

Logo, a melhor garantia jurídica do reclamante é a integração dos sócios no pólo passivo da demanda já na fase de conhecimento, ainda que futuramente não seja necessário utilizar-se do instituto jurídico da desconsideração da personalidade jurídica, pois é notório que as pessoas não se confundem e, mais ainda por esse motivo, é que é necessária a integração dos sócios na fase de conhecimento, porque por as pessoas não se confundirem, havendo necessidade de acometer a responsabilidade de satisfação do crédito ao patrimônio dos sócios, tendo esses dilapidados os patrimônios, não há que se falar em fraude à execução, haveria, pois, se a dilapidação fosse da empresa e não dos sócios, visto ser a pessoa jurídica parte integrante do pólo passivo, diverso do que se refere às pessoas físicas que figuram no contrato social.

Escrito em 25 de julho de 2010.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A BANALIZAÇÃO DO ART. 483 DA CLT.

A igualdade constitucionalmente garantida é o fator pelo qual se versam os artigos 482 e 483 da Consolidação das Leis do Trabalho, uma vez que, aos sujeitos da relação de emprego, é possibilitado o acesso à justiça, a fim de obterem a rescisão do contrato de trabalho, tanto por justa causa do empregado (art.482 da CLT), quanto pela justa causa do empregador (art.483 da CLT).

Entretanto, se verifica, atualmente, a banalização do art. 483 da CLT, pois os empregados descobriram que podem rescindir o contrato de trabalho por justa causa do empregador, o que seria, portanto, da forma como se tivessem sido dispensados sem justa causa, podendo receber guia TRCT-01, levantar FGTS, receber a multa de 40% sobre o FGTS depositado, receber as guias CD/SD etc..

Até então, utilizar-se do direito consolidado não há nada de errado, contudo, a prática de tal uso é preocupante. Não raras vezes, as assentadas da Justiça do Trabalho que versam sobre a rescisão indireta, entram na seara da falta de interesse do empregado em continuar trabalhando na empresa, por indiferentes motivos, entretanto, tais empregados não externalizam seus interesses em sair da empresa, com o pedido de demissão, muitas das vezes, tentam um “acordo” com o empregador, extrajudicialmente, consistindo na dispensa, como se fosse sem justa causa, com a devolução ao empregador dos 40% da multa do FGTS, objetivando, portanto, o recebimento das guias do seguro-desemprego.

Quando se deparam com a negativa do que queriam, iniciam o processo de tentativa de dispensa sem justa causa, tentando, de certa forma, fazer com que o empregador os dispensem imotivadamente. Em algumas situações, tais ações obreiras resultam na dispensa imotivada, já em outras, resultam na dispensa por justa causa, ou na indiferença do empregador acerca de tais ações obreiras, deixando-os na empresa, no aguardo do pedido de demissão.

Nessa última hipótese, enquadra-se a banalização do art. 483 da CLT, onde, os empregados, objetivando o desligamento da empresa, mas sem perder alguns benefícios caso fossem dispensados imotivadamente, demandam na Justiça do Trabalho, alegando a justa causa do empregador, pedindo a rescisão indireta do contrato de trabalho. Tal argumento, no meio globalizado-cibernético-tecnológico, foi disseminado, como se fosse um vírus de alta proliferação, que chegou ao conhecimento de uma quantidade considerável de empregados, que, ao tomarem ciência, na primeira oportunidade que possuem, utilizam-se da informação da rescisão indireta para tentar lograr êxito, quando a vontade interna é a demissão.

Há épocas em que algumas temáticas ficam em evidência no âmbito trabalhista, já se repetiram, incontávelmente, questões como: danos morais; desvio de função; equiparação salarial; adicional de insalubridade etc., agora, o foco está voltado para o art. 483 da CLT, não raras vezes, pautas de audiências na Justiça do Trabalho, têm processos que, as causas de pedir e os pedidos se baseiam, exclusivamente, na rescisão indireta do contrato de trabalho.

Não se pode olvidar tal fato desarrazoado, há, portanto, necessidade, inquestionável, de demonstrar às partes litigantes, principalmente aos empregados, que a Justiça do Trabalho, mesmo com todos os princípios protecionistas, a título de exemplo – Princípio da Tutela do Trabalhador, da Continuidade do Trabalho, da Hipossufiência do Obreiro etc. – não fecha os olhos para o péssimo uso da máquina judiciária, com demandas inócuas e providas de interesses torpes, objetivando, além de desestruturar as premissas de dispensas [i]motivadas e demissões, a fraude, tanto no sentido do recebimento do seguro-desemprego, quanto ao saque do FGTS, sendo que várias vezes os empregados iniciam um novo contrato de trabalho, sem carteira assinada, por acordo verbal firmado entre o novo empregador e o empregado, tendo incontroversa ilegalidade.

Por fim, se o Judiciário permitir o uso desarrazoado da máquina judiciária, estará diante da inaplicabilidade punitiva e educativa das normas. Onde, não se poderão impor sanções, multas por litigação de má-fé etc., ou se impostas, não surtirão efeitos, diante da já consolidada banalização do art. 483 da CLT, portanto, havendo medidas coercitivas, punitivas, efetivas, como por exemplo, condenação do reclamante que, por patente banalização, demanda judicialmente sua rescisão indireta do contrato de trabalho, condenando-o ao pagamento de multa por ato atentatório à dignidade da Justiça bem como por litigação de má-fé, iniciar-se-á, um novo vírus de alta proliferação, benéfico à justiça, diverso do que originou tal banalização, no sentindo de que haverá uma redução estatisticamente considerável de demandas nesse sentido.

Para tanto, quando o Judiciário começar a se impor de forma efetiva e condenando com intuito de educar a sociedade, teremos uma Justiça mais integra e menos passível de ser infectada pelos vírus contemporâneos da indignidade, má-fé e, principalmente, da torpeza.

Escrito em 17 de janeiro de 2010.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

JUIZ, LEI E GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA*

Caros, após a leitura desde brilhante texto, que tive acesso pela indicação da Juíza Dra. Adriana Goulart de Senna, disponibilizo-lhes para que possa engrandecer o conhecimento.
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Por Márcio Túlio Viana**

Estava me lembrando, um dia desses, da Praça Navona. Muitos de vocês a conhecem: é talvez a mais bonita do mundo. Mas não era de sua beleza que eu me lembrava: era das cartomantes. Toda noite, quando ia lá, via as suas mesinhas, com velas e baralhos.
Isso me fez pensar também em Ronald Reagan. Não que ele frequentasse a praça; é claro que não. Mas dizem que não dava um passo sem consultar os astros. Tinha não sei quantos videntes a seu serviço na Casa Branca.
Perguntarão os colegas: mas porque tantos devaneios? E o que têm a ver cartomantes e presidentes com essa palestra de fim de tarde?
É que a vida é cada vez mais incerta. As verdades uma a uma se vão. Já não se sabe, sequer, qual é o maior rio do mundo, se foram mesmo os egípcios que construíram as pirâmides, ou se Cristo morreu pregado na cruz.
Há algum tempo ganhei de um primo um livro chamado “Cigarro faz bem à saúde”. Quem escreveu foi um médico, Phd não sei onde. O livro me animou a continuar fumando os meus dois cigarrinhos diários; já o meu primo, não sei bem por quê, continuou a mascar fumo de rolo... É a única pessoa que eu conheço que mantém esse velho hábito.
O fato é que o mundo está tão incerto, tão instável, que as pessoas ficam aflitas à procura de certezas. Um dia desses, em Curitiba, nós mesmos nos perguntávamos: a justiça é uma solução ou um entrave?
No mundo do trabalho, as dúvidas são ainda maiores. Na verdade, são tantas as dúvidas, e tantas as contradições, que achei mais seguro colocar as idéias nestas folhas de papel. Por isso, espero que me perdoem a traição. De todo modo, prometo palavras simples: tentei escrever como se estivesse falando. E não serão mais do que 40 minutos.
Começo contando uma história.O herói dessa história se chama Sir Evelyn Ellis. Vocês, com certeza, nunca ouviram falar dele. Era um lorde inglês, e provavelmente tinha a sua bengala, o seu monóculo e o seu relógio de bolso.
Mas o que ele queria, mesmo, era ter um carro. E por isso procurou uma fábrica de máquinas e ferramentas. Naquele tempo - fim do século passado - as fábricas de ferramentas começavam a produzir automóveis.
Mas Sir Ellis era um homem exigente. Queria um carro do seu gosto. Por isso desenhou, ele próprio, os assentos. Discutiu a transmissão. Falou sobre o volante e os freios. Era tudo muito natural, e ninguém se espantou com isso.
Algum tempo depois, Sir Ellis entrava para a História: foi o primeiro inglês a chegar de automóvel em sua casa de campo. Da cidade até lá, eram 90 longos quilômetros. E ele provavelmente pensava em seu inadiável chá das cinco. Por isso, pisou fundo no acelerador - e chegou em 5 horas e 32 minutos.
Foi um recorde: 16 quilômetros por hora! Mas foi também uma ilegalidade. O máximo permitido, para os cavalos da época, eram 6,44 quilômetros horários...
O problema é que Sir Ellis era um lorde. Não lhe ficava bem violar a lei. Por isso, convenceu seus pares a adaptá-la aos novos tempos... e aos novos cavalos mecânicos. O limite de velocidade passou então para 19,32 quilômetros por hora!
A história de Sir Ellis revela traços da primeira grande crise. E tem algo em comum com a crise que vivemos hoje. Mas comecemos do começo: como funcionavam as coisas no tempo de Sir Ellis?
Havia, como sabemos, um outro modelo de Estado. Seu papel fundamental era o de proteger a propriedade. Quanto à lei, já era igual para todos, muito embora, como disse um autor, alguns fossem mais iguais do que os outros. Por isso, o capital era livre. Voava como queria. Mas queria voar mais alto, como o carro de Sir Ellis.
O problema era o motor: alcançara o seu limite. Em outras palavras: produzia-se pouco - e caro - para um mercado crescente. Mas como resolver o problema? Como produzir em massa? Como subir os lucros?
Quem respondeu a essas perguntas foi especialmente Frederick Taylor. Dizem que era um maníaco: desde mocinho, andava com um cronômetro na mão, medindo os seus passos e movimentos. Mas era também um homem inteligente.
Taylor notou que já se dividia o trabalho, mas bem menos do que se podia. E isso encarecia e emperrava a produção. E o que era pior: facilitava a resistência operária. A sabotagem, por exemplo, nasceu naqueles tempos. A palavra sabot, em francês antigo, traduzia-se por tamanco. Os operários jogavam tamancos nas engrenagens das máquinas.
Taylor sabia que, quando um homem resolve construir alguma coisa - uma vara de pescar, por exemplo - ele primeiro concebe, depois executa. É diferente do que acontece com os animais, que não antecipam sua própria obra.
Por isso, sua primeira idéia foi dividir o homem. Separou a mão e o cérebro, o pensar e o fazer. Quanto mais mecânico fosse o trabalho, melhor e mais barato seria. Em seguida, depois de um estudo detalhado de tempos e movimentos, foi subdividindo, metodicamente, cada função. No início, aplicou seus métodos no chão da fábrica. Depois, nos escritórios. Nascia a chamada “gerência científica”.
Os colegas sabiam, por exemplo, que em média gastam 0,033 minutos para mover-se em suas cadeiras giratórias? Ou 0,04 minutos para abrir uma gaveta de arquivo? Mas atenção: se a gaveta for do meio, são 0,026 minutos! Descobertas de Taylor e de seus discípulos...
Já o lendário Henry Ford era um misto de mecânico, empresário e inventor. Ele percebeu que, mesmo dividindo o trabalho, havia muita perda de tempo. Primeiro, porque os operários iam e vinham de uma máquina para outra. Depois, porque as pequenas peças variavam muito de forma e tamanho. Era impossível usar o mesmo tipo de parafuso mais de uma vez.
Um dia, Ford resolveu dar um passeio pelos abatedouros de frango de Chicago. E descobriu que era possível fazer com que as peças viessem aos homens, em vez de irem os homens atrás das peças. Bastava instalar uma esteira rolante - e foi isso que ele fez. Ao mesmo tempo, uniformizou as peças. Tornou-as intercambiáveis. E essas mudanças eliminaram tempos inúteis, acentuando ainda mais a divisão de trabalho.
Para cada função, um homem - ou um pedaço de homem. O próprio Ford dizia que o seu famoso Modelo -T podia ser construído por 670 operários sem pernas, 2 367 de uma perna só, dois sem braços, 715 de um braço só e 10 cegos.
Com a mecanização do trabalho, reduziram-se os espaços de resistência. Já não eram os homens a controlar as máquinas: as próprias máquinas controlavam os homens. E já era possível produzir em massa.
Acontece que os riscos eram em massa também. E, para reduzí-los, nada melhor do que controlar, de alto a baixo, todo o ciclo de produção. Mais uma vez, Ford deu o exemplo: em poucos anos já possuía navios, minas de ferro e até uma plantação de borracha na Amazônia. Nascia a empresa vertical, como um prédio de apartamentos.
Produção em massa exigia infraestrutura - e então apareceu o Estado, com Itaipus e rodovias. Mas produção em massa pedia, também, consumo em massa. E, para um consumo em massa, não bastava baixar os preços. O Estado completou a obra, com políticas de bem-estar.
Produção em massa exigia, também, máquinas grandes e caras: impossível trocá-las a cada momento. Por causa disso, os produtos tinham de ser homogêneos: eram poucos os modelos, e custavam a sair de linha. Uniformes os produtos, também os homens se uniformizaram - todos eles trabalhando como peças de um relógio.
Mas a produção em massa pedia, também, emprego em massa. E esses dois componentes - pleno emprego e homogeneidade - fortaleciam o movimento operário. Para resolver o problema, Ford dobrou os salários - e, aos poucos, todos seguiram o seu exemplo.
Nasceu, implicitamente, uma espécie de pacto. Os sindicatos já não questionavam o sistema: lutavam apenas por ganhos crescentes. Até Lenine citava Taylor como um exemplo a seguir. Ao mesmo tempo, para neutralizar qualquer resquício de resistência, as fábricas armavam-se com uma rede intrincada de poder, com dezenas ou centenas de níveis hierárquicos.
Esse modelo econômico gerou também o seu direito. Homogêneo, duradouro, abrangente. Tal como os produtos. Tal como a fábrica. Um direito que é também ambivalente: combate pelos oprimidos, ao mesmo tempo em que ajuda a legitimar a opressão.
Produção em massa, consumo em massa, direitos em massa. Tudo parecia bem: como se dizia, o círculo era virtuoso. Uma a uma, como num jogo, as peças encaixavam-se. E foi exatamente por isso que - quando uma delas saiu do encaixe - o modelo entrou em crise.
Qual teria sido a peça que se desencaixou primeiro? É difícil saber. Mas talvez tenha sido a do consumo.
Os choques do petróleo elevaram os preços. Com isso, o consumo se retraiu. Então, o Estado perdeu renda, e começou a cortar as políticas sociais. Com isso, caiu ainda mais o consumo.
Os sindicatos já não conseguiam salários crescentes. E a própria lei perdia eficácia. Os custos aumentaram. Cresceu a resistência. O pacto rompeu-se. A concorrência aumentou.
O círculo deixou de ser virtuoso. Passou a ser vicioso. E então, tal como um urso que acorda, o capital se mexeu. Pois era preciso, mais uma vez, manter a dominação e subir as taxas de lucro.
Nasceu o novo modelo: o da produção flexível. Com ele, uma nova ideologia, uma nova questão social e um novo modo de pensar o direito. E também um novo mercado - um mercado global. Para isso, o capital pediu a ajuda da ciência, cada vez mais comprometida com os interesses econômicos.
Quais as origens desse modelo? Na verdade, suas origens são remotas. Vêm dos anos 50.
Foi quando a Toyota entrou em crise - antecipando, de certo modo, a crise global dos anos 70. No Japão ferido pela guerra, as taxas de lucro caíam, a resistência aumentava, o consumo se retraía.
Era preciso mudar - e foi o que fizeram o empresário Toyota e seu engenheiro Taiichi Ohno. A palavra de ordem foi reduzir os custos - e diversificar os produtos. Para isso, trataram de eliminar a porosidade da fábrica.
Um exemplo: os estoques. Era preciso acabar com eles. Outro exemplo: os movimentos. Os operários deviam aproveitar cada instante de seu tempo. Mas, ao mesmo tempo, era também necessário minar as resistências, e a solução foi introjetar nos operários a idéia de que a empresa era uma coisa deles.
Mas deixemos de lado o Japão e visitemos uma empresa moderna. Como ela funciona? Qual é a sua lógica?
A lógica é reduzir custos. E uma das estratégias é externalizar. A empresa joga para as outras tudo aquilo que não pertence ao foco de suas atividades. Mas de outro lado reintegra-se, formando grupos de parceiras. Já não é como um edifício: é um conjunto de casas. O vertical horizontaliza-se.
Nos vácuos deixados pela grande empresa, multiplicam-se as empresas pequenas. Mas sua liberdade é aparente - pois dependem de seus contratos para viver. Por isso, travam entre si uma guerra desesperada. E essa mesma guerra se reproduz entre os trabalhadores, numa espécie de seleção natural, em busca da sobrevivência. É como disse um autor: “o capitalismo tem a grande sabedoria de fazer com que os outros lutem por ele”.
Se as pequenas empresas lutam pela sobrevivência, não costuma ser assim no que toca às grandes. Cada vez mais elas se unem, partindo o mercado em fatias e limitando a concorrência. Um exemplo: em breve, cruzará os nossos ares um Super-Jumbo da Boeing, Airbus, Douglas, Mitsubishi e Fugi. Outros exemplos: apenas quatro corporações controlam 92% dos eletrodomésticos norte-americanos. No mundo inteiro, cinco empresas respondem por 70% da produção de bens duráveis de consumo.
Assim, como se vê, a rede de parceiras que forma a base não tem nada a ver com a rede de parceiras que está no topo. Concorrência em baixo, oligopólios em cima. Em termos de poder, o vertical verticaliza-se.
E o que acontece no interior da empresa enxuta? Cada vez mais se automatiza. E isso lhe permite descartar ainda mais a mão-de-obra excedente.
Quanto aos produtos, são mutantes. Estão sempre variando, ao sabor dos consumidores. E os consumidores mudam de gosto a cada instante, não tanto porque estejam ficando mais exigentes, como se diz, mas porque o próprio mercado os impele a isso. Para vender numa economia saturada, nada melhor do que multiplicar necessidades.
O problema é que - mesmo provocados - esses variáveis desejos têm componentes imprevisíveis. Por isso, toda empresa tem de estar sempre pronta para mudar produtos e ritmos. Não pode se dar ao luxo de ter estoques - nem de materiais, nem de homens.
Por isso, tudo funciona ao avesso. Ao invés de um segmento da produção despejar no subsequente as suas peças e matérias-primas, gerando estoques intermediários, cada qual pede ao anterior exatamente o que precisa, na medida certa. Os erros têm de ser corrigidos na hora, e depressa, e por isso as informações correm velozmente de um ponto a outro. O sistema trabalha sem folgas, sem falhas, sem fôlego.
Tudo é transparente - como num tubo de cristal. E tudo é móvel: homens, máquinas, produtos. Se já não há tantos chefes, é simplesmente porque eles não são mais necessários. A qualidade é tão total que envolve o próprio homem. E quanto mais produtivo ele é, mais ameaçado estará - no futuro - o seu emprego.
Aliás, num certo sentido, a própria fábrica, de imóvel que era, torna-se móvel. Viaja em busca de mão de obra barata, tributos menores, sindicatos frágeis, políticas favoráveis... e direitos sem eficácia. E mesmo quando não planeja viajar, usa essa possibilidade latente como arma de pressão. Isso faz com que cidades, regiões e países inteiros passem a disputá-las, tal como acontece com as parceiras que estão na sua base.
Dou-lhes um exemplo real: tenho uma amiga que era secretária de planejamento numa cidade mineira. Certa vez, uma multinacional anunciou que talvez fosse para lá. Entre outras coisas, exigia uma área de 5 milhões de metros quadrados, alojamentos, um clube de campo, empréstimos subsidiados, isenção de tributos... E o pior é que tudo não passava de um blefe: desde o início, a empresa já sabia que não ia implantar sua fábrica ali.
Notem os colegas que o movimento das peças mudou - mas, tal como antes, elas se encaixam perfeitamente. Estados fracos - e corporações fortes. Produtos descartáveis, baratos, variados. Trabalhadores descartáveis, baratos, fragmentados.
Para a grande empresa, é bom que haja desemprego, precariedade, economia informal. É graças a isso que ela pode contratar a preço baixo os serviços de suas parceiras. Não é à toa que a bolsa de Nova Iorque sempre cai quando caem os índices de desemprego...
Do mesmo modo, é ótimo que as fronteiras se abram, pois assim a empresa pode, por exemplo, pagar 1,6 dólares a hora, no México, pelo mesmo trabalho que nos Estados Unidos custa 6. Ou até usar mão-de-obra infantil, como acontece na Tailândia. Ou o trabalho escravo, como no Brasil. Seja diretamente, seja por vias travessas.
E é também interessante que se partam os grupos - pois o poder sindical reduz-se. E se o sindicato é fraco, nada melhor do que abrir espaços, cada vez maiores, à “livre” negociação. Especialmente sem a interferência da lei para reequilibrar a balança.
Com o sindicato em crise, muda a relação entre a lei e a negociação coletiva: antes, a lei estipulava o mínimo; hoje, o mínimo vai-se tornando o máximo. Muda a própria posição dos atores: o empresário é cada vez mais ativo e o sindicato cada vez mais passivo.
Na verdade, o sistema briga com todas as formas de representação - e, no limite, talvez seja incompatível com a própria negociação coletiva. Tende, cada vez mais, ao fragmentado, ao individual, ao arbitrário. Depende cada vez menos do trabalhador assalariado. Margareth Thatcher sintetizou a mudança: “não há sociedade”- disse ela - “só indivíduos”.
É esse conjunto de peças que viabiliza o modelo. É essa instabilidade que lhe dá - paradoxalmente - uma certa estabilidade. É assim que crescem os lucros, os ritmos e o domínio. Tal como um doente em coma, o trabalhador tem de lutar com mais força exatamente quando as forças lhe faltam...
Para respaldar tudo isso, um novo modelo de direito e uma forte ideologia. A ideologia diz que tudo que é público, é ruim. Seu papel é deslegitimar o Estado, pois é o Estado, com todas as suas contradições, o principal agente de redistribuição de riquezas. “Governo não é solução, é problema” - discursava Ronald Reagan, enquanto protegia as suas fronteiras dos produtos japoneses. E a ideologia, hoje, tem muito mais força do que jamais teve, pois se vale de uma mídia altamente sofisticada.
E o que dizer da lei?
Tal como os produtos, ela busca a divisão, o fragmento. Do mesmo modo que os grupos, ela se parte em pedaços. Aparentemente, isso é positivo: novas relações, novas regras. Parece até que o direito vai ficando maior. Além do mais, como se diz, o contrato padrão vai sumindo. Cada vez menos gente trabalha sem prazo, com jornada inteira, para um só empregador.
O problema é que a lei não é apenas um retrato da realidade. Ela ajuda a criá-la. A lei reforça, legitima, convence. É transformada, mas transforma. E a lei também ilude, mascara, entorta. Tal como a jurisprudência e a doutrina.
Vejam, por exemplo, o caso da subordinação. A voz geral é que está em crise. E sendo ela, como é, a pedra de toque do emprego, o direito do trabalho perde o seu ponto de apoio. Mas acontece que nunca o trabalho foi tão subordinado - exceto, talvez, quando a própria lei não existia.1
Na verdade, como dizia Nelson Rodrigues, é preciso desconfiar das unanimidades. Nem sempre o discurso da moda reflete o real, nem sempre a modernidade... é moderna. O Direito do Trabalho sempre teve um componente ambíguo: legitima o capital, protegendo o trabalho. Agora, parece buscar o unívoco: prioriza, cada vez mais, o capital.
Mesmo quando as palavras não mudam, muda a postura do intérprete - cada vez mais envolvido pela nova ideologia. E mesmo quando a leitura não muda, a eficácia da norma reduz-se. Repete-se, com a lei do Estado, o mesmo fenômeno que afeta a lei do grupo: quando mais se precisa dela, menos força ela tem.
Qual a solução para a crise? O que esperar do futuro? O que esperar do juiz?
Não sei o que poderiam dizer as cartomantes da praça Navona, mas os autores estão divididos.
Uns apostam no futuro. Para esses, a automação nos trará liberdade, a engenharia genética vai matar a fome do mundo, a informática nos dará o controle do saber e o fim da guerra fria já nos trouxe paz eterna. O único problema será administrar o lazer.
Para outros, o futuro é de terror. Nem mesmo os vitoriosos gozarão sua vitória. O mundo global globalizará a miséria, hordas de famintos invadirão as cidades e o mundo explodirá em múltiplas guerras civis.
Para uns, a solução está dentro do sistema. Para outros, o sistema não comporta soluções. Afinal, se todos perderem o emprego, quem irá comprar os produtos? Como diria Brecht: “tantas perguntas, poucas respostas...” Mas talvez o melhor seja ser pessimista, para lutar, otimistamente, por um futuro menos negro.
Pergunto: e como pode lutar o juiz?
Eu diria que o juiz deve repensar os seus conceitos. E reaprender, com a canção, a caminhar contra o vento. Tentar usar a lei como arma de mudança. Usar suas horas livres para aprender novos caminhos. Denunciar, a cada passo, as contradições do sistema. Trocar, quando for o caso, a segurança pela justiça. Lutar pela greve, pela cogestão, e, de um modo geral, para fortalecer a ação coletiva.
O juiz deve, como disse alguém, embriagar-se de nostalgia - não de uma época que já passou, mas de uma época que ainda não existe. Mas deve, sobretudo, abrir os olhos para o mundo - e eu sei quanto isso é difícil, pois nossa função nos impele a viver em pequenas ilhas. É que não estamos juízes; somos juízes. De corpo inteiro. Noites e dias.
Eu mesmo, durante um bom tempo, vivi entre sentenças ... e pescarias. Hoje pego um romance para ler, e vem-me a sensação de que estou perdendo tempo. Minha esperança é que sou distraído: um dia, quem sabe, leio um Machado de Assis achando que estou lendo Celso Barbi, ou - melhor ainda - pego o carro para o Tribunal, e acabo chegando na beira de um rio...



___________________
* Palestra proferida no TRT da 3ª Região, em julho de 1998.
** Juiz do TRT da 3ª Região e Professor da Faculdade de Direito da UFMG.
1 A propósito, v. a excelente tese Mundialização, neoliberalismo e novos marcos conceituais da subordinação, do colega paranaense Reginaldo Melhado (apresentada no último Conamat, em Curitiba)

quarta-feira, 21 de julho de 2010

NATUREZA ALIMENTÍCIA DO SALÁRIO

O salário é fornecido diretamente ao empregado pelo empregador, em decorrência da relação empregatícia, seja em função da retribuição ao labor prestado, da disponibilidade do empregado, das interrupções contratuais ou demais hipóteses previstas em lei.

Noutro falar, é o direito do empregado que surge a partir da entrega de seu labor ao empregador, sendo o sacrifício o meio para se obter o benefício; o dispêndio da força laboral é a conditio sine qua non[1] ao recebimento do salário.

Nessa seara, Antônio Álvares da Silva dispõe que: “trabalho não é apenas o meio de subsistência do trabalhador, mas o sustento da vida social e o suporte de toda a produção de bens e serviços necessários à sua existência.[2]

Assim, o salário para o empregado é como a norma para o direito, indubitavelmente necessária e dele indissociável. Tais características justificam a proteção que a tal parcela é conferida.

Como não poderia deixar de ser, a proteção abarca todo um contexto em torno das parcelas contraprestativas, em vista de seu caráter alimentício e em consonância com os princípios justrabalhistas como, por exemplo, a indisponibilidade, ainda que relativa, dos direitos trabalhistas (arts. 9º, 444 e 468 da CLT), sendo de suma importância uma proteção incisiva, em razão da hipossuficiência do empregado.

Dentro do contexto da real finalidade do salário na vida dos empregados, o art.5º, LXVII; art.7º, IV e art.100, §1º, todos da Constituição da República Federativa do Brasil, demonstram claramente a natureza alimentícia do salário, haja vista a externalização trazida no texto constitucional e o Princípio da Interpretação Conforme.

Nesse sentido, Luciano Marinho de B. E. Souza Filho tem o entendimento de que: “[...] salários e verbas rescisórias têm caráter alimentar – o que significa dizer estar protegido pelo instituto da prisão civil, através de uma interpretação sistêmica e finalística.”[3]

Não é por outra sorte que Carlos Henrique Bezerra Leite, preleciona que: “os pedidos veiculados nas iniciais trabalhistas são, via de regra, relativos a salário, ou seja, parcelas com nítida natureza alimentícia.”[4]

Deve-se, ainda, ter a visão de que o salário possui uma importância indiscutível para toda a sociedade, eis que seus reflexos vão desde a esfera psicológica do empregado até às questões sociais, culturais, políticas e de crescimento econômico, este considerado coletivamente.

Cumpre trazer à baila as palavras de Maurício Godinho Delgado, que evidenciam, de forma clara, o caráter alimentício e a função social do salário:

“O caráter alimentar do salário deriva do papel socioeconômico que a parcela cumpre, sob a ótica do trabalhador. O salário atende, regra geral, a um universo de necessidades pessoais e essenciais do indivíduo e de sua família. A ordem jurídica não distingue entre níveis de valor salarial para caracterizar a verba como de natureza alimentícia. A configuração hoje deferida à figura é unitária, não importando, assim, o fato de ser (ou não), na prática, efetivamente dirigida, em sua totalidade ou fração mais relevante, às necessidades estritamente pessoais do trabalhador e sua família. A natureza alimentar do salário é que responde por um razoável conjunto de garantias especiais que a ordem jurídica defere à parcela [...].”[5][não há grifos no original]

Assim, torna-se indiscutível a natureza alimentícia do salário e, mais ainda, sua importância para os empregados, que, não raras vezes, não possuem alternativas ou, até mesmo, formação profissional e instrução, para buscar trabalhos que a eles sejam mais vantajosos. Entretanto, são limitações como estas últimas que, cada dia mais, fazem com que os empregados se sujeitem a condutas abusivas praticadas pelos empregadores, a fim de que não faltem a si próprios e às suas famílias as condições mínimas para uma sobrevivência digna.



[1] Termo legal em latim para “sem o qual não pode ser.”

[2] SILVA, Antônio Álvares da. Competência Penal Trabalhista. São Paulo: Ltr, 2006, p. 48.

[3] SOUZA FILHO, Luciano Marinho de B. E.. Breves considerações acerca da prisão civil por inadimplemento de pensão alimentícia. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 182, 4 jan. 2004. Disponível em: . Acesso em: 06 abr. 2010.

[4] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 6ªed. São Paulo: LTr, 2008, p. 422.

[5] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed. São Paulo: LTr. 2008, p. 708.

Tutela constitucional do salário


Assistimos hoje a uma grande preocupação com a efetividade do texto Constitucional, com o seu real cumprimento; com a concretização da norma no mundo dos fatos e na vida das pessoas.[1] Todavia, a interpretação do texto constitucional encontra divergências naturais em um estado de direito, sendo salutares todas as discussões instauradas e, ainda, válidas todas as posições sustentadas, à exceção daquelas que, ao invés de sustentar posições jurídicas, simplesmente pretendem ignorar dispositivos constitucionais, sem explicar as razões de sua inobservância.

Tal situação é verificada nas hipóteses de afastamento da natureza alimentícia do salário, trazidas pela não aplicação da interpretação principiológica e extensiva do texto constitucional, verificada, ainda, pela inserção do §1º do art.100 da CRFB, com redação dada pela emenda constitucional 62 de 2009, o qual traz a definição explícita da natureza alimentícia, conforme se vê ipsis litteris:

“[...]§ 1º Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo.” [não há grifos no original].

A leitura do parágrafo 1º do art. 100 da CRFB deve ser realizada em consonância com outros artigos da Constituição, tendo em vista ser tal parágrafo o responsável pelo detalhamento do que é entendido como débitos de natureza alimentícia.

Além da criação do parágrafo 1º do art. 100 da CRFB, o enquadramento dado pelo legislador constituinte originário ao inciso IV do art. 1º da Constituição Federal, demonstra sua importância definindo-o como um de seus fundamentos.

Ainda, no decorrer da leitura da Magna Carta, extraem-se direitos trabalhistas constitucionalmente garantidos, como facilmente percebe-se, por exemplo, na proteção dada pelo inciso X do seu art. 7º, constituindo crime a retenção dolosa de salário.

O conceito de salário é determinado pela doutrina juslaboral, como já demonstrado, ficando o juiz do trabalho responsável pela sanção cominada pela Constituição, quando, v. g., o empregador dolosamente retém os salários dos seus empregados, descumprindo a norma máxima no sistema jurídico brasileiro, bem como contrariando regras celetistas passíveis de multas administrativas e até de prisão penal e civil, tendo em vista a previsão para a retenção dolosa do salário e sua natureza alimentícia indubitável.

A lei proporciona a todos o acesso à justiça (art. 5º, inciso XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), a paridade de tratamento, o devido processo legal etc..Portanto, a retenção salarial, seja dolosa ou não, traz ao empregado um desconforto e impotência perante suas obrigações. Se o salário, conforme previsão constitucional deve ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do empregado e de sua família, seu inadimplemento levará ao descumprimento da regra prevista no inciso IV do art.7º da CRFB.

Destarte, há explicita violação à CRFB, suprimindo a dignidade da pessoa humana e desnorteando os valores sociais do trabalho, fundamentos constitucionais (art.1º, III e IV da CRFB).

Assim, se outro fosse o objetivo do constituinte originário em determinar qual natureza teria o salário, não haveria, portanto, tal proteção constitucional explicitada em diversos títulos da Carta Magna e, posteriormente, sido absolutamente esclarecida pelo constituinte derivado, como se deu pela edição do parágrafo 1º do art. 100 da CRFB.

Por essas razões, a importância da utilização de mecanismos tendentes a garantir os adimplementos das obrigações trabalhistas, no aspecto, corroborará como meio alternativo, depois de esgotadas as tentativas já efetivadas de satisfação do crédito, dada sua natureza extremamente radical, já que se valem da restrição do direito à liberdade, a fim de garantir o direito à sobrevivência e à integração social.

Tais mecanismos, atualmente tidos como heterodoxos e radicais, muito embora já estejam previstos no ordenamento jurídico, sendo a prisão civil por inadimplemento de obrigação alimentícia e a prisão penal por desobediência à ordem judicial, terão como consequência uma maior efetividade dos direitos laborais, sendo certo que diante da banalização dos institutos processuais que as partes utilizam maliciosamente, bem como as formas de protelações e obstruções dos empregadores em cumprir as condenações ou, ainda, obedecer à ordem judicial, estarão diante da ultima ratio da Justiça do Trabalho para findar sua prestação jurisdicional, cumprindo com a entrega do bem da vida, enquanto este ainda possa ser útil à parte vencedora no litígio.



[1] BARROSO, Luiz Roberto. Dez anos da Constituição de 1988 (Foi bom para você também?). Cidadania e Justiça. Revista da Associação dos Magistrados brasileiros. Ano 2. nº 5. 2º semestre. 1998. p. 47.

EFETIVIDADE DAS DECISÕES PROFERIDAS NO ÂMBITO DA JUSTIÇA DO TRABALHO

Na Justiça do Trabalho, enquanto órgão do Poder Judiciário observa-se, como regra geral, uma destacada busca pela aplicação dos preceitos constitucionais trazidos pela EC 45/2004, constantes do art. 5, LXXVIII da CRFB, no que concerne à razoável duração do processo e à celeridade de sua tramitação,[1] sendo importante destacar que, mesmo antes da entrada em vigor da emenda supramencionada, o espírito a permear a atuação jurisdicional no âmbito laboral, sempre se revestiu do caráter ora normatizado, pela aplicação precípua dos princípios da oralidade e da informalidade, os quais, a par da consequente desburocratização dos andamentos processuais, garantem o direito à ampla defesa e ao contraditório, sem que, para tanto, seja necessário o percurso de verdadeiras vias crucis forenses, que podem levar ao perecimento de direitos reconhecidos judicialmente, mas levados à execução, quando não mais trarão de volta o bem da vida suprimido.

Todavia, de nada adianta a Justiça do Trabalho ser célere na fase de conhecimento e até mesmo na prática dos atos tendentes a executar seus comandos, se a efetividade da entrega da prestação jurisdicional final esbarra em entraves criados pelos devedores voluntários e sem escusas justificadas, no sentido de furtarem-se, por meio de fraudes ou mesmo utilizando-se de mecanismos legais, do cumprimento das obrigações fixadas judicialmente, o que leva ao nefasto fenômeno da síndrome da inefetividade processual,[2] que põe em dúvida a credibilidade dos órgãos judicantes e, até mesmo a legitimidade do ordenamento jurídico, o que existe, mas não gera efeitos práticos, reforçando a sensação geral de impunidade tão combatida na sociedade brasileira.

Nessa conjectura:

“[...] se se reconhece a legitimidade do ordenamento jurídico, nenhuma medida de força se revelaria, em princípio, excessiva para assegurar o seu cumprimento. Se esse ordenamento é tido como legítimo, o órgão a quem cabe assegurar o seu cumprimento efetivo, se não estiver armado, com todas as armas - inclusive drásticas – será visto como farsante e todas as normas nele postas serão reduzidas a uma mera exortação.”[3] [Não há grifos no original]

O empecilho encontrado pela Justiça do Trabalho está disposto no que tange às questões da eficácia, efetividade e obediência às ordens emanadas, principalmente, das decisões condenatórias de cunho pecuniário, e acaba por prejudicar uniformemente o sistema judicial, sendo que as garantias constitucionais de natureza processual não podem ser olvidadas, relegadas, diminuídas ou denegridas, havendo necessidade de se fazer cumprir as decisões, dando-lhes efetividade.

Não necessariamente dever-se-á banalizar atitudes firmes para que se consiga a efetividade esperada, entretanto, é necessário que se inicie um processo de reestruturação das técnicas de efetividade das ordens judiciais, a fim de que se mantenha a ordem jurídica, a segurança jurídica, a eficácia da prestação jurisdicional e da tutela jurisdicional e, via de consequência, protegendo o bem da vida, não apenas como ficção judicial, mas como realidade de pacificação social no plano da realidade.

Assim, para que se tenha uma real efetividade de decisões judiciais, baseando-se, pois, na celeridade e, via de consequência, na imediata reação protecionista do bem lesado, teremos como efeito imediato a realização da justiça no caso concreto e, mais importante, a concretização do caráter pedagógico e repressivo das punições (prisão civil e penal), as quais, após a conscientização dos envolvidos nas relações de trabalho, levarão a um maior cumprimento espontâneo das normas vigentes, fazendo com que tais sanções figurem apenas como “avisos”, aplicáveis a uma minoria de recalcitrantes.



[1] "o direito à defesa, assim como o direito à tempestividade da tutela jurisdicional, são direitos constitucionalmente tutelados. Todos sabem, de fato, que o direito de acesso à justiça, garantido pelo artigo 5º, XXXV, da Constituição da República, não quer dizer apenas que todos têm direito de ir a juízo, mas também quer significar que todos têm direito à adequada tutela jurisdicional ou à tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva." [Não há grifos nos original]. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença, 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 18.

[2] No sentido de que os meios utilizados pelo Poder Judiciário a fim de que sejam cumpridas as obrigações por ele fixadas, atualmente, são ineficazes, tendo em vista que se decide, mas não se cumpre.

[3] GUERRA, Marcelo. Contempt of court: efetividade da jurisdição federal e meios de coerção no código de processo civil. Prisão civil - Tradição no sistema Anglo-Saxão e aplicabilidade no direito brasileiro. In: Execução contra a Fazenda Pública. Brasília: Centro de Estudos Judiciários - CJF, 2003. p. 311. (Série Cadernos do CEJ, v. 23)

Crítica à limitação interpretativa do art. 5º, LXVII da CRFB/88

A redação do inciso LXVII do art. 5º da CRFB: é clara, d.m.v, e não passível de uma interpretação conforme se vê quotidianamente,[1] tendo alguns operadores do direito a seguinte leitura interpretativa de tal inciso, de maneira diversa da real redação:

Leitura interpretativa: não haverá prisão civil por dívida, salvo a pensão alimentícia e a do depositário infiel.

Real redação: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”[2];

A Constituição não limitou[3] tão-somente à pensão alimentícia como obrigação referente à prisão nas hipóteses de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia, em seu inciso LXVII do art. 5º, bem como se vê da decisão Habeas Corpus 01079-2009-000-03-00-6, do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região:

“[...] que o texto da Constituição Federal fala em "responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia" (artigo 5º, inciso LXVII), não se limitando a excepcionar a possibilidade de prisão civil para o devedor de pensão alimentícia.”[4] [Não há grifos no original]

De tal sorte que, se tivesse havido a intenção de limitar, não haveria motivos para se editar o art.100, §1º da Carta Magna, cronologicamente posterior e totalmente conexo ao texto original que, inclusive, complementa a interpretação.

Assim, diante da criação do §1º do art.100 da CRFB, não há discutir a existência, ou não, na lei, da natureza alimentícia do salário. Quando da edição da EC/62 de 2009, que modificou o art. 100 e parágrafos da CRFB, caso tivesse sido interesse do legislador em limitar a interpretação do inciso LXVII do art. 5º da CRFB, para tão-somente a pensão alimentícia, poderia dentro da taxatividade do que se consideram débitos de natureza alimentícia, limitar ainda mais, dizendo que se sopesam restritivamente para casos de precatórios.



[1] Nesse sentido, não se pode ignorar, por outro lado, que as vantagens salariais decorrentes da reintegração têm indiscutível natureza alimentar, sendo de observar que o inciso LXVII do artigo 5º da Constituição de 1988 exclui da vedação constitucional da prisão civil por dívidas não apenas o caso de “não pagamento de pensão alimentícia”, como por vezes se proclama de forma imprecisa. Como está dito literalmente naquele preceito constitucional, fica autorizada a prisão civil por dívida no caso de “inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia” - expressão mais ampla que qualquer interpretação menos rotineira dessa norma considerará ter ocorrido em inúmeros casos na esfera trabalhista, se forem suprimidos ou diminuídos tais direitos, em afronta indireta à ordem judicial aqui cogitada. PIMENTA.José Roberto Freire. Tutela específica e antecipada das obrigações de fazer e nãofazer no processo do trabalho. cominação de prisão pelo juízo do trabalho em caso de descumprimento do comando judicial. Rev. TRT - 3ªR. - Belo Horizonte, 27 (57): p.142, Jul.97/Dez.97

[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <>acesso em 21 de maio de 2010.

[3] Assim, Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus – onde a lei não distingue, não pode o interprete fazer distinções.

[4] BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho – 3º Região. Habeas Corpus. Nº 01079-2009-000-03-00-6 - Primeira Turma – Juiz Relator: Des. Manuel Cândido Rodrigues – publicado em 18/09/2009 – disponível em , acessado em 10 de abril de 2010.